quinta-feira, 30 de abril de 2009

SAUDAÇÃO A ANTÓNIO TELMO, 7

António Telmo: Filosofia plena e assumpção da História
Pedro Martins

1. António Telmo exorta-nos algures a que reunamos as numerosas tríades de conceitos com que o leitor atento de Álvaro Ribeiro se depara, sempre que percorre as laudas luminosas da sua obra. Fá-lo com o propósito evidente de nos levar a estudá-las. Tanto quanto me lembro, não revela António Telmo a razão profunda do alvitre, mas pressente-se que o filósofo entreveja nesse trabalho exaustivo a porta que nos aproxima do tesouro legado pelo seu mestre, senão a chave que a franqueia.

Bem se compreende que um pensador subtilmente tributário do movimento aristotélico como Álvaro Ribeiro conceba a tríade como a lei inexorável da manifestação. Essa tríade pode ser descritiva de uma sucessão de termos já consumada (diacronia), qual a do movimento da potência que, posta em acto, se cumpre na perfeição; ou, por acréscimo, indiciar a geração de novos movimentos, pela existência simultânea dos termos que a compõem (sincronia). Além dos movimentos específicos assim representados, a posição relativa dos termos enunciados na sequência triádica e a possibilidade efectiva de desenvolver a analogia entre tríades são factores que, por si ou conjugadamente, se oferecem à nossa ponderação.
Assim, o mesmo termo – “poeta” – não tem o mesmo sentido quando, nas Memórias de um Letrado, Álvaro Ribeiro o inclui na tríade poeta, dramaturgo e historiador, que refere a Jaime Cortesão; e quando, n’A Razão Animada, a propósito da leitura como processo de convívio mental com os espíritos de escol, declara dar preferência “aos historiadores que nos façam imaginariamente reviver a acção, aos poetas que nos ensinem a poetar, aos pensadores que nos façam pensar”. Ali, poeta está por poeta lírico, sendo que o historiador, dada a implícita permutação com o romancista, se há-de reportar à epopeia (em Cortesão, será a história, e não o romance, a dar a final o épico, género já entrevisto no poema inaugural A Morte da Águia e nos sequentes dramas O Infante de Sagres e Egas Moniz). Aqui, a analogia com essoutra tríade, definidora do composto humano, que se analisa em corpo, alma e espírito – analogia que Rui Lopo, em lúcido ensaio sobre Tempo e Liberdade no Pensamento de Álvaro Ribeiro, pôde licitamente estabelecer – mostra como poeta é o termo médio de uma simultaneidade hierarquizada, e não já a potência de uma manifestação sucessiva.
Por grandes, ou graves, que sejam as restrições e as objecções que lhe possamos opor, a ideia de que o triunvirato insigne da Renascença Portuguesa, formado por Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra, permite ilustrar a tríade, há pouco citada, d’A Razão Animada revela-se cómoda e sedutora. Releve-se, no lance, a passagem meteórica, pelo movimento portuense, de Fernando Pessoa (por Álvaro Ribeiro considerado o filósofo da Renascença Portuguesa) rumando ao estrelato; ressalve-se o tardio, mas poderoso, eclodir da historiografia de Cortesão; admita-se a existência de incursões recíprocas dos três principais vultos renascentistas nas alheias circunscrições preferenciais (pense-se, por exemplo, que Cortesão foi um notável poeta; que Pascoes se revelou um singular filósofo e também, de certo modo, um historiador, tanto quanto o coube ser ao cronista inflamado d’Os Poetas Lusíadas e ao surpreendente biógrafo que no São Paulo irá despontar; e que Leonardo, sobre ser, no dizer de Pinharanda Gomes, “o mais poético dos filósofos”, foi um dos primeiros, depois de Bruno e de Pessoa, a preocupar-se com a interpretação filosófica da nossa poesia). Não se negue, porém, que cada qual se realizou sobretudo no cumprimento da sua enteléquia: Cortesão como historiador, Pascoes como poeta e Leonardo como pensador.

Dito isto, será imperioso fazer notar que historiador, tal como poeta, é termo que não tem o mesmo sentido quando integra a tríade relativa ao movimento que apenas implica a pessoa de Cortesão; e quando integra a tríade que respeita ao triunvirato. Ali, expressa a perfeição do que se consumou na realização da essência. Aqui, é corpo submetido à acção, coexistindo com a alma e o espírito do ente renascentista, que só a metáfora permite vislumbrar.
Na geração seguinte, recriadora da Renascença na filosofia portuguesa, Álvaro Ribeiro representou o eclipse do termo historiográfico nessa tríade, quando, equívoco e elíptico, afirmou um dia a António Telmo que Sampaio Bruno passara à história ao escrever O Encoberto. E não era a história o domínio do passado, do feito e do facto, ou seja, o terreno de eleição do positivismo? A prova real estava n’A Ideia de Deus, livro filosófico como poucos, obra primordial da filosofia portuguesa, que, em suas derradeiras páginas, a apontava ao futuro.
Bem sei que houve uma incursão historiográfica, aliás fundamental, por propedêutica, na obra alvarina. Mas serviu verdadeiramente para opor as duas colunas, Sampaio (Bruno) e Leonardo Coimbra, a’Os Positivistas. Dito isto, quase tudo fica dito.
Pela escala da permutação analógica se alcança a degradação da relevância historiográfica – na díade que o título d’A Razão Animada permite evidenciar: a superior relação do espírito com a alma, que ali surge designada, encontra significação paralela no diálogo eterno entre a filosofia e a poesia, a que Álvaro Ribeiro dará crucial atenção, na sua obra-prima como noutros lugares. O corpo e, correlata, a história, ficam na penumbra. E, no entanto, o eclipse, pois que o seja, será efémero…
Como poderia em absoluto renegar a musa Clio quem, como Álvaro Ribeiro, mandara atender, pela leitura nova, à filosofia implícita nos “documentos teológicos, políticos e literários em que se afirmou espontânea e originalmente o génio português”? Não seria, afinal, essa desvalorização da história que o filósofo propugnava uma solerte retirada táctica perante a contenda que opunha o nacionalismo historicista de Salazar ao materialismo histórico de Cunhal? E a verdade é que o corpo – e, por extensão, a história – parecem readquirir os seus direitos logo nas derradeiras linhas d’A Razão Animada, onde se afirma que “o homem sofre e sofrerá enquanto desviar o pensamento da verdadeira medicina, daquela medicina que é simultaneamente corporal, animal e espiritual”.

2. Não será exagerado afirmar que a História Secreta de Portugal (revista e ampliada n’O Horóscopo de Portugal) ficou sendo um dos marcos miliários da filosofia portuguesa. Nela, António Telmo mostra a rara clarividência de considerar António Sérgio e António de Oliveira Salazar as duas faces de uma moeda pouco valiosa. Quem havia estranhado que Álvaro Ribeiro, n’A Literatura de José Régio, tivesse contraposto um socialismo ateu a um socialismo cristão foi bem capaz de encontrar uma resposta esclarecedora da sua perplexidade neste livro pioneiro.
Com a História Secreta de Portugal ressurge plenamente a consideração global da história pátria no âmbito do pensamento filosófico português. No trânsito das gerações, António Telmo restaura sinteticamente a tríade em que a Renascença Portuguesa pudera ser analisada; e, ao fazê-lo, irrompe por um novo caminho, reabilitador do devir histórico. Com isso, não impugna as teses de Álvaro Ribeiro, seu mestre – antes as desenvolve.
O que, deste modo, resulta incontroverso é o facto de António Telmo haver amplamente contribuído para a recriação da própria filosofia portuguesa, naquilo que nesta, em sua dimensão operativa, implica a transcensão da estreita metafísica racionalista e sistemática. A história e a poesia não nos aparecem já – pelo menos de modo necessário, ou permanente – como géneros autónomos de que o filósofo haja de lançar mão a título acessório, com carácter ocasional, subsidiário ou instrumental perante a actividade do pensamento, que, todavia, não perde a sua condição principal e soberana. Trata-se sempre de considerar pontos de vista co-essenciais, a que o olhar simpático e sintético do filósofo deve atender de modo integrador, visto como, pelo prisma da analogia, estas três esferas do conhecimento são uma projecção macrocósmica do próprio homem.
O passado (aquilo que se passou projectado naquilo que se passa) deixa de ser encarado como objecto (ou obstáculo) do conhecimento histórico, pois isso seria admitir uma solução de continuidade, contra a qual a razão operativa naturalmente protesta: não há história, está-se na história. No espantoso capítulo da História Secreta de Portugal sobre os “Fenómenos Misteriosos”, na esteira da decifração dos medalhões do Claustro dos Jerónimos, e de símbolos semelhantes existentes num presumível templo maçónico dos Gamas perto de Azeitão, precedendo um novo relato experiencial demonstrativo, bem nos alerta António Telmo: “Os símbolos impressos na pedra tornam-se, de súbito, viventes e o que parecia apenas um pretexto ou um texto para o voo especulativo transforma-se numa matéria perigosa”. Não há passado, presente ou futuro; tão só um continuum no tempo e no espaço em que a missão libertadora da filosofia se propõe interferir.
Esta concepção plenária da filosofia operativa implica uma revisão da essência do conhecimento histórico, que há-de reverter experiencialmente. Neste sentido, é legítimo falar de uma assumpção da história, não só pelo relevo que esta recobra, mas também, e sobretudo, pela exaltação libertadora com que a filosofia distingue e cinge a factualidade histórica emergente, soerguendo-a redentoramente a um novo plano ôntico.
Quanto vem sendo dito pode bem ser ilustrado por um exemplo colhido na biografia de Sampaio Bruno, permanente enxertia da vida na história. Joel Serrão emprega o termo misticismo para descrever a transmutação espiritual que Bruno sofreu no exílio, após o malogro do 31 de Janeiro. Porém, logo acrescenta tratar-se de um misticismo “que não significa uma ruptura com o passado, mas um salto, um crescimento espiritual, o encontro de algo longamente procurado”. O Brasil Mental dá notícia desse salto. Nele, o filósofo consigna que “a Pátria é uma religião”; e atribui-lhe um “anjo-da-guarda” que, na noite do 31 de Janeiro, “soluçando, escondeu o rosto, na dor, desesperada e alucinante, da derrota”. A evocação, que é afinal uma invocação, de Sampaio Bruno pretende patentear como a consciência de uma história secreta, ou sagrada, parece despontar na hora da fundação da Escola Portuense. Com António Telmo, com a sua História Secreta de Portugal, ela irá ressurgir com acrescida nitidez, mas sem perder o lastro da vivência episódica que a autentica.
Pelo caso que nos é narrado no capítulo "Fenómenos Misteriosos", António Telmo mostra-nos como, numa nova deslocação ao templo dos Gamas, motivada pela curiosidade da investigação histórica, começa por se cingir à percepção do mundo pelo corpo, para, em seguida, se abrir à percepção pela alma, atento o reconhecimento de um sentido oculto nas sucessivas aparições de uma águia (o de essa ave lhe indicar o caminho para o lugar pretendido), e também a estranha alteração entretanto operada, por breves horas, no seu estado físico e psíquico. Ora, esta percepção pela alma, cuja significação não é independente de um critério histórico (a águia é um dos símbolos iniciáticos presentes no Claustro do Jerónimos), é susceptível de, pelo prisma da analogia, convocar a incidência da poesia na escala da filosofia plena. Ainda aqui, a obra de António Telmo irá revelar uma acuidade espantosa no modo orgânico como o seu desenvolvimento se processa.
Há mais de trinta anos que o filósofo persiste e insiste na desocultação da obra esotérica de Luís de Camões, num esforço sagaz e corajoso, de que o Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões nos surge como emblema e paradigma. Na senda de Jaime Cortesão, que, em obra de síntese, exalçou e sublimou a essência épica da história pátria pelo trilho poético d’Os Lusíadas; e de Álvaro Ribeiro, que vira na epopeia camonina aquela realização do mundo intermediário ou imaginal que, de um prisma futurante, importaria superar; vem António Telmo ensaiando a convergência dos nossos arcanos e dos nossos arquétipos nesse grande rio Eufrates que é a obra tremenda do vate imortal. De alguma sorte, foi daí, dessa declarada matriz persa, que o filósofo se lançou, depois, na aventura da navegação pelas três correntes que concorrem e confluem para a formação do mar espiritual português: Filosofia e Kabbalah, Viagem a Granada e Congeminações de um Neopitagórico.
Na seriedade imensa de décadas de inquietação e diálogo, de estudo e meditação, de vivência e experiência, estes três livros constituem símbolos de demanda da harmonia abraâmica que molda o nosso pensamento filosófico. Nisso; como na adopção de um verdadeiro Organon, qual o formado pela Arte Poética e pela Gramática Secreta da Língua Portuguesa, com que nos procura ensinar o caminho árduo que, pelas imagens e pelas palavras, conduz à floração das ideias; ou como na exemplar liberdade que garante o seu pensamento religioso, António Telmo mostra-se legítimo depositário do legado de Álvaro Ribeiro. Ler a sua obra, estudá-la, meditá-la, amá-la e continuá-la é o caminho a seguir por quem pretenda preservar a filosofia portuguesa.